domingo, 4 de outubro de 2009

Discurso sobre a desigualdade (Rousseau)


Discurso sobre a desigualdade (Rousseau)

Na passagem aqui selecionada, Rousseau analisa as origens do mal social através de uma crítica da organização da sociedade e do abuso da técnica e dos artifícios que afastam o ser humano da vida natural. Rousseau defende uma natureza humana originária, caracterizada pela liberdade, pelo instinto de sobrevivência e pelo sentimento de piedade. A visão do “bom selvagem” como encarnando essas virtudes naturais é utilizada por Rousseau como um instrumento de crítica ao homem civilizado.


(1) O primeiro que tendo cercado um terreno, ousou dizer Isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simplórias para lhe dar crédito foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tampando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Evitai escutar esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e a terra não é de ninguém!” Mas tudo indica que as coisas haviam chegado ao ponto de não poderem durar mais como estavam: pois essa idéia de propriedade, derivada de muitas idéias anteriores que só foram capazes de nascer sucessivamente, não se formou de uma taca só nos espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muito engenho e esclarecimento, transmiti-los e incrementá-los de época para época, antes de chegar a este último termo do estado de natureza. Remontemos então no tempo, e tratemos de reunir sob um único ponto de vista essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos em sua ordem mais natural. [...]


(2) Esses primeiros progressos puseram enfim o homem em condições de promovê-los mais rápidos. Quanto mais o espírito se esclarecia, mais a indústria se aperfeiçoava. Em pouco tempo, deixando de dormir sob a primeira árvore, ou de se refugiar em cavernas, ele encontrou algumas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar madeira, escavar a terra, e fazer cabanas de folhagens que em seguida logo foram entremeadas de argila e de lama. Essa foi a época de um primeira revolução, que consolidou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, a qual já deu muitas margens a querelas e conflitos. No entanto, como os mais fortes foram os primeiros a construir alojamento que se sentiam capazes de defender, tudo leva a crer que os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar desalojá-los; e, quanto àqueles que já possuíam cabanas, nenhum teve que buscar se apropriar da do seu vizinho, menos em função de não lhe pertencer do que em virtude de lhe ser inútil, e porque não poderia se apoderar dela sem se expor a um renhido combate com a família que o ocupava. [...]

(3) Eis precisamente o nível a que chegou a maior parte dos povos selvagens que conhecemos; e é por não ter distinguido suficientemente as idéias, e observado como esses povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, que muitos se precipitaram em concluir que o homem é naturalmente cruel e que precisam de uma organização social e política para domá-lo; ao passo que nada é tão manso como ele em seu estado primitivo, quando, afastado pela natureza, tanto da estupidez dos brutos como das luzes funestas do homem civil, e coagido tanto pelo instinto como pela razão a se resguardar do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer ele próprio mal a alguém, sem ser levado a isso por algo, mesmo depois de ser agredido. Pois, segundo o axioma do sensato Locke, não poderia haver injustiça ali onde não existe propriedade.

(4) Mas é preciso notar que a sociedade incipiente e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles qualidades diferentes daquelas que mostravam em sua constituição primitiva; que a moralidade começando a se introduzir nas relações humanas,e cada um, antes das leis, sendo o único juiz e vingador das ofensas que recebera, a bondade conveniente ao puro estado de natureza não era mais aquela que convinha à sociedade nascente; que era preciso que as punições se tornassem mais severas à medida que os casos de injustiça se tornavam mais freqüentes; e que cabia ao terror das vinganças servir de freio às leis. Assim, embora os homens tivessem se tornado menos pacientes, e a piedade natural já tivesse sofrido certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades humanas, ocupando um meio-termo entre o conformismo do estado primitivo e a impulsiva atividade de nossa vaidade, deve ter sido a época mais feliz e mais duradoura. Quanto mais refletimos sobre isso mais achamos que esse estado era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem, o qual só deve ter saído dele por algum funesto acaso, que, para o bem comum, nunca deveria ter ocorrido. O exemplo dos selvagens, que encontramos quase todos nesse estágio, parece confirmar que o gênero humano fora criado com o objetivo de assim permanecer para sempre, que esse estado é a verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos posteriores foram aparentemente passos rumo à perfeição do indivíduo, m as na verdade rumo à deterioração da espécie.


(5) Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar suas roupas de peles com espinhos ou espinhas de peixe, a se enfeitar com plumas e conchas, a pintar o corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou a embelezar seus arcos e suas flechas, a modelar com pedras afiadas algumas canoas de pescadores ou alguns grosseiros instrumentos musicais; em suma, enquanto se dedicaram a trabalhos que só um podia fazer, e a ofícios que não precisavam da colaboração de muitas mãos, eles viveram livres, saudáveis, bons e felizes na medida em que o podiam ser por sua natureza, continuando a gozar entre si das delícias de um intercâmbio independente; mas, a partir do momento em que um homem precisou do socorro de um outro, desde que se percebeu que era útil a um homem ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho se tornou necessário e as vastas florestas viraram campos risonhos que era preciso regar com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinar e crescer junto com as colheitas.

(6) A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta, foram o ouro e a prata; mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano. Tanto um como o outro eram desconhecidos para os selvagens da América, que por isso permaneceram tal e qual; os outros povos parecem inclusive ter permanecido bárbaros enquanto praticaram uma dessas artes sem a outra. E uma das melhores razões por que a Europa se tornou, senão mais cedo ao menos mais constantemente, melhor estruturada que as outras partes do mundo, talvez resida em que é ao mesmo tempo a mais abundante em ferro e a mais fértil em trigo. [...]

(7) A invenção das outras artes foi portanto necessária para forçar o gênero humano a se dedicar à da agricultura. Desde que homens se fizeram necessários para fundir e forjar o ferro, outros homens se fizeram necessários para alimentar aqueles. Quanto mais o número de trabalhadores se multiplicava, menos havia mãos voltadas para fornecer a subsistência comum sem que houvesse menos bocas para consumi-la; e, como a estes fizeram necessários víveres em troca de seu ferro, os outros descobriram finalmente o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos víveres. Daí nasceram, de um lado, o trabalho e a agricultura e, de outro, a arte de trabalhar os metais e multiplicar os seus usos.

(8) À cultura das terras, seguiam-se necessariamente a sua divisão e, uma vez reconhecida a propriedade, regras de justiça: pois, para dar a cada um o seu quinhão, é necessário que cada um possa ter alguma coisa; além disso, os homens começando a pensar no futuro, e constatando que todos perderiam alguns bens, não havia um que não temesse a represália pelos erros que podia cometer contra o outro. Essa origem é ainda mais natural na medida em que é impossível conceber a idéia de propriedade nascente sem ser através da mão-de-obra; pois não se vê que, para se apropriar das coisas que ele não produziu, o homem deve colocar aí mais do que o seu trabalho. É apenas o trabalho que, dando direito ao agricultor sobre o produto da terra que ele cultivou, lhe dá o direito por conseguinte sobre o solo, ao menos até a coleta, e assim ano após ano; o que, constituindo uma posse contínua transforma-se assim facilmente em propriedade.
ATIVIDADES

1. Significado das Palavras. Leia o texto parágrafo por parágrafo procurando compreender o sentido do texto. A primeira atividade é de interpretação, portanto, procure no dicionário o significado das seguintes palavras que tenha a ver com texto: (Obs.: Se houver outras palavras que você desconheça anote-as também)
1º. Parágrafo: - Termo
2º. Parágrafo: - Entremear; Querela; Desalojar; Renhido
3º. Parágrafo: - Funesto; (luzes) Luz; (coagido) Coagir; Axioma
4º. Parágrafo: - Incipiente; Impulsivo; Deterioração;
5º. Parágrafo: - Intercâmbio
6º. Parágrafo: - Metalurgia; Bárbaro
7º. Parágrafo: - Arte; Subsistência; Víveres
8º. Parágrafo: - Quinhão; Represália

2. Desenvolvendo Conceitos: Natureza e Natural

Estado de Natureza: O estado de natureza para Rousseau é o estado no qual o homem se encontra antes de existir a sociedade. O homem natural, portanto, é o homem desprovido de todas as características do homem social. Ele é diferente do animal não pelo uso que faz da razão, pois esta só existirá mais tarde, mas pela sua capacidade de escolha, pela sua liberdade. Portanto, é um ser com capacidade de se aperfeiçoar, mas, primitivamente, ele é só instinto.
Sentimento de Piedade: é a capacidade de se colocar no lugar do outro, mas de uma forma completamente instintiva, do mesmo modo que um cachorro tem piedade de outro cachorro quando o vê sendo judiado.

Procure no dicionário em que sentido foram empregados os termos grifados abaixo e anote o significado correspondente a cada número:

Certo dia Rousseau foi até uma floresta e lá se refugiou em meio à natureza (1), pois ele queria entender a natureza (2) das coisas. Nada, portanto, mais natural (3) do que esse tipo de pensamento; mas, devido à sua própria natureza (4), Rousseau se entediou e voltou antes do tempo que havia planejado. Entretanto, ele já havia descoberto algumas coisas, por exemplo, para ele, a casa que o João-de-Barro constrói é algo natural (5), enquanto que o trabalho humano foge completamente da natureza (6), portanto, ele se pergunta de que natureza (7) é esse tipo de trabalho. Com certeza, se Rousseau fosse vivo hoje, só comeria comida natural (8) e continuaria tentando entender a natureza (9) humana.


3. Resumo: Faça um resumo de cada um dos oito parágrafos

4. Localização de Temas: Indique os parágrafos em que Rousseau desenvolve os seguintes temas: (Anote o número correspondente ao parágrafo e o trecho que o confirma).

A. O progresso é ruim para a espécie humana. ( )
B. A agricultura como resultado de outras atividades ( )
C. O desconhecimento da metalurgia e da agricultura impedem o progresso dos selvagens ( )
D. A idéia de propriedade deriva de muitas outras anteriores ( )
E. Erro dos filósofos ao acreditarem que o homem é mau por natureza ( )
F. O primeiro indício da idéia de propriedade. ( )
G. A igualdade desapareceu quando o homem precisou da ajuda de outro. ( )
H. A relação entre propriedade e trabalho ( )

5. Questionário: (Responda com as suas palavras, não faça cópia do texto)
A.) Por que Rousseau diz que a invenção das outras artes foi necessária para forçar os homens a se dedicarem a agricultura? (parágrafo 7)
B.) Por que Rousseau diz que a metalurgia e agricultura que fizeram a grande revolução da sociedade? (parágrafo 6)
C.) Como Rousseau explica a origem da propriedade?

6. Argumentação: Faça um resumo do texto completo, procurando mostrar como Rousseau formula o problema, mostrando os argumentos que ele usa para chegar a sua tese de que a desigualdade entre os homens está estreitamente ligada com a instituição da propriedade.

domingo, 27 de setembro de 2009

Deus não pode ser provado pela razão (Kant)


Deus não pode ser provado pela razão (Kant)

Depois de mostrar que nós só alcançamos o mundo dos fenômenos, e é só a partir daí que podemos fazer juízos, Kant nos mostra que a questão de se Deus existe ou não, não pode ser provada pela razão.


Seja qualquer e quanto se queira o conteúdo do nosso conceito de um objeto, nós sempre temos que sair dele, para conferir existência a esse objeto.
Nos objetos dos sentidos isso acontece mediante a conexão com uma das minhas percepções, segundo leis empíricas; mas para os objetos do pensamento puro absolutamente não há meio de conhecer a sua existência, porque esta deveria ser conhecida inteiramente a priori.
Mas a nossa consciência de toda existência (ou pela percepção, imediatamente, ou por raciocínios que unem alguma coisa à percepção) pertence em tudo e por tudo à unidade da experiência; e se a existência fora desse campo certamente não pode ser declarada absolutamente impossível, constitui, porém, uma hipótese que não temos como justificar.
O conceito de um Ser supremo é uma idéia útil sob muitos aspectos; mas, justamente por ser uma simples idéia, é incapaz, por si só, de ampliar o nosso conhecimento a respeito do que existe...
Todo o trabalho e o estudo investido no tão famoso argumento da existência de um Ser supremo foram, portanto, perdidos; e um homem, por meio de simples idéias, certamente não se enriqueceria de conhecimentos, da mesma forma que um mercador não poderia se enriquecer de dinheiro se, para melhorar a sua própria condição, acrescentasse alguns zeros em seu livro-caixa.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009


Razão a marca do ser humano (Schopenhauer)



O trecho que vem a seguir foi retirado da obra máxima de Schopenhauer “O Mundo como Vontade e como Representação” (1818), mais precisamente do oitavo parágrafo do livro primeiro, onde após caracterizar tanto os homens como os animais como possuidores de entendimento o que lhes permite relacionar com o mundo, ele apresenta a diferença que distância o homem do restante dos animais: a razão. A razão utiliza a linguagem como o seu principal instrumento e cuja função essencial é a formação dos conceitos.

Esta nova consciência (a reflexão), espécie de conhecimento em segundo grau, esta transformação abstrata de todo elemento intuitivo num conceito não intuitivo da razão, comunica só ao homem essa previdência que distingue tão profundamente a sua inteligência da dos animais, e que torna sua conduta tão diferente da vida dos seus irmãos desprovidos de razão. Ele excede-os também muito, pelo seu poder e pela sua capacidade de sofrer. Eles apenas vivem no presente, ele vive, além disso, no futuro e no passado; eles apenas satisfazem as necessidades momentâneas, ele prediz as que ainda não existem e providencia, através de mil instituições engenhosas, para um tempo em que talvez ele já não exista. Enquanto que eles são absolutamente dominados pela impressão presente, o homem pode, graças as noções abstratas, libertar-se do presente nas suas determinações. Além disso, vêmo-lo combinar e executar planos concebidos antecipadamente, agir em nome de certas máximas, sem considerar as circunstâncias acidentais, nem a influências ambientais; ele pode, com a maior calma, tomar prudentes disposições a respeito de sua morte; ele é capaz de dissimular até se tornar impenetrável e de levar consigo para o túmulo o seu segredo; ele tem, enfim, o poder de escolher realmente entre diversos motivos, visto que é apenas in abstracto que vários motivos podem ser apresentados simultaneamente na consciência, aparecer pela comparação, a excluírem-se uns aos outros, e dar a medida da sua ação sobre a vontade, após o que o motivo mais forte acaba por vencer: ele torna-se a decisão refletida da vontade, à qual confere assim seu caráter essencial.
O animal, pelo contrário, só é determinado pela impressão do momento; apenas o receio de um castigo instantâneo pode conter os seus apetites, e esse receio, ao passar a hábito, determina imediatamente os seus atos: é toda a arte da domesticação. O animal sente e percebe, o homem pensa e sabe; ambos querem. O animal comunica as suas sensações e o seu humor através de movimentos e de gritos; o homem desvenda ou esconde do outro os seus pensamentos com a ajuda da linguagem. A linguagem é o primeiro produto e o instrumento necessário da razão...
...É apenas graças a linguagem que a razão pode realizar os seus maiores feitos, por exemplo, a ação comum de vários indivíduos, a harmonia dos esforços de milhares de homens num intento preconcebido, a civilização, o Estado; depois, por outro lado, a ciência, a conservação da experiência do passado, o agrupamento de elementos comuns num conceito único, a transmissão da verdade, a propagação do erro, a reflexão e a criação artística, os dogmas religiosos e as superstições.
O animal apenas tem idéia da morte quando morre; o homem caminha todos os dias para ela com pleno conhecimento, e esta consciência derrama sobre a vida uma tinta de melancólica gravidade, mesmo para aquele que não compreendeu ainda que ela é feita de uma sucessão de aniquilamentos. Esta presciência da morte é o princípio das filosofias e das religiões; contudo, não se poderá dizer se elas alguma vez produziram a coisa mais inestimável na conduta humana, a livre bondade e a nobreza de coração. Os seus frutos mais evidentes são, do ponto de vista filosófico, as concepções mais estranhas e mais arriscadas; do ponto de vista religioso, os ritos mais cruéis e mais monstruosos, nos diferentes cultos.
Todos os séculos e todos os países são unânimes em reconhecer que todas essas manifestações do espírito, por mais variadas que elas sejam, procedem de um princípio comum, dessa faculdade essencial que distingue o homem do animal, chamada a razão. Todos os homens sabem reconhecer as manifestações da razão e, quando ela entra em conflito com outras, discernir o elemento racional do irracional; eles sabem também aquilo que não se pode esperar mesmo do animal mais inteligente, sempre desprovido dessa faculdade.